domingo, 7 de janeiro de 2018

CONSTRUÇÃO, UM POEMA DE CHICO BUARQUE








Estava eu, outro dia, a ler um livro do Ricardo Araújo Pereira quando me deparo, a abrir um capítulo, com o poema do Chico Buarque de Hollanda “Construção”.

Começo por fazer um curto parênteses para declarar que não aderi à moda de dizer mal do RAP. Não porque tenha alguma coisa contra a Moda em geral, até costumo seguir as suas tendências, mas há de facto modas que não fazem o meu género. Lembram-se daquelas botas de cano alto muito bicudas, mais conhecidas como botas-de-matar-baratas-ao-canto-da-sala? Pois eu sempre as achei abomináveis e não adquiri nenhum par. A ponta das minhas botas quer-se redonda, ou na pior das hipóteses quadrada, vá. Bicuda: nunca.
Isto para dizer que sou admiradora do rapaz. Vou discordar com ele num ponto mas é um acaso, uma excepção.
Então inicia ele com o poema “Construção” um capítulo que tem por título. “Mudar uma Coisa para outro Sítio”
E pensei eu, mas que raio está um poema destes a fazer num livro sobre o Humor?
Eu até percebo, diga-se de passagem, porque se fosse eu a escrever um livro, fosse sobre que tema fosse, futebol, ovos mexidos, bacará, etc, eu tentaria encontrar um pretexto para enfiar lá o dito poema. Porque este é um dos poemas da minha vida.
Quando eu era pequena o meu pai tinha lá em casa um álbum do Chico Buarque chamado “Construção” e como podem ver nas fotos, na contra-capa do disco vem o poema com o mesmo nome.
Ora isto foi num tempo em que eu não tinha acesso a livros de poesia, começava a ler na escola alguns poemas que vinham no manual da disciplina de Português. Mas este poema estava ali à mão de semear e pronto para ser cantado, que era uma coisa que gostava muito de fazer. Então devo ter lido a “Construção” dezenas de vezes, para não dizer centenas. Obviamente decorei o mesmo. E a páginas tantas comecei a pensar sobre o que queria dizer aquilo.
Ao fim de muitos anos fui capaz de avançar com uma explicação para a composição poética do Chico.
“Construção” é um poema sobre a construção dos poemas, é um meta-poema. O poema é, aqui, como uma casa.
Senão vejamos:

Na primeira estrofe os versos são escritos com uma linguagem quase comum:


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um passáro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego"



É como se o autor vertesse em verso uma notícia de jornal: Morreu no Sábado passado, um operário da construção civil que estava a trabalhar no cimo de um prédio quando caiu do mesmo. Deixou mulher e filhos.
Portanto ao transformar a notícia em versos consegue-se um poema no seu estado bruto. Como uma casa que tem, no seu início, os alicerces, as vigas de cimento envolvendo o ferro no interior, o que irá dar suporte à construção, ou seja, ao poema. Podia ficar assim? Podia, há muitos poemas deste estilo, nus, despidos de adornos, secos, mostrando apenas a sua força mais interior. Quando se olha para uma casa nesta fase já se percebe que aquilo é uma casa.

Segunda estrofe:
"Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com o seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e solução como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público"

Aqui a linguagem já não é comum, afasta-se do que sairia numa notícia de jornal, as palavras associam-se de forma mais inusitada. O que acontece é que começamos a dar conta que aquele homem quando saiu de casa já vinha transtornado, notamos agora o seu sofrimento, entramos no seu mundo interior e percebemos o seu drama. É a casa-poema ganhando paredes, tijolo a tijolo, que são as palavras a serem colocadas no sítio certo.
Se olharmos, agora, a casa já é mesmo uma casa, com paredes e tecto e tudo o que uma casa precisa.

Mas, o Chico dá-nos ainda uma última liçãozinha de poesia:

Um poema pode ser ainda melhor se a linguagem for mais invulgar, associação de palavras for ainda mais surpreendente. Então:


“Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o Sábado”

Agora eu consigo ver o desespero do homem com outra nitidez, como se o pudesse entender, como se pudesse ler-lhe os pensamentos e sentir a sua dor.
Isto é a casa a ser rebocada, a sofrer todos os acabamentos finais, a ficar perfeita e pronta a ser habitada. É o poema a conseguir a sua força máxima.

E por tudo isto “Construção”, ao contrário do que o RAP afirma, não é um poema onde simplesmente umas palavras mudam de lugar. É muito mais que isso.

“Construção”: uma lição de poesia.
Toma, RAP. De nada, pá.

Nota: o livro em questão chama-se “A Doença, O Sofrimento E A Morte Entram Num Bar” ( Uma Espécie de Manual de Escrita Humorística) e é muito bom, recomendo vivamente a sua leitura.

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