quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Estrela Distante



O fumo de um pequeno
avião de combate antigo
desenhando traços no céu,
poemas quase perfeitos
nas simulações aéreas,
assombro do omisso
e implacável piloto-poeta.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

pele






A pele nunca se cala. A pele sabe falar. Foi por isso que fugiste ao meu primeiro toque. Por medo que a pele me contasse os teus segredos. Na altura não percebi. Andei como que cega. Mas agora é como se visse que não tinhas alternativa. A fuga foi a tua salvação. Eu não podia saber, ninguém podia saber, dessa tragédia que te consome. A pele queria falar. A pele aborta o silêncio. É por isso que o toque conhece tudo no primeiro instante. O calor que vem da pele. O frio que vem da pele, a solidão.
A pele sente necessidade de falar. Conta tudo, entrega os pontos, desabafa, chora, é a  rendição total. E a fuga, por vezes, é a única maneira de iludir a morte.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Porque é Natal





O nosso coração rejubila de emoção,
Finalmente, chegou mais um Natal.

Tudo está iluminado e brilhante
E há boa desculpa para voltar ao Centro Comercial
Porque mais uma vez é Natal.

É uma época de grande paz interior
Pois nasceu o... quem era esse menino afinal?

E prós doentes as Festas viram festival
Os pimbas cantam  no palco do Hospital:
Não sejam piegas, é Natal!

Podemos descansar das tragédias do jornal
Do pensamento fazemos um intervalo,
Porquê? Porque é Natal.

Tudo a rasgar dos presentes o laçarote
Das caixas deixadas pelo barbudo velhote
A minha família quase parece normal
Todos à mesa na galhofa e a comer o peixote,
Claro, é Natal!

Tudo corre bem e de feição,
Os doces fritos nem sequer fazem mal
Não engordam nem causam
Refluxo do suco estomacal
Só porque é Natal.

É do ano a noite mais tradicional
Pró comunista e pró fã do capital
Ó estúpido, é o Natal!




sábado, 19 de dezembro de 2015

O velho que queria matar o cão

Beckett, o meu cão


O cabrão de um velho
levantou a enxada
para atacar o meu cão.
Lancei os gritos afiados
que se cravaram nos braços
perfurando-lhe a intenção
que uma levada não é
mais importante que um animal
feliz, o meu amigo.
Se as palavras pudessem matar
haveria mortes pelo pedaço
de terra baldia, árida,
mortes por hortaliça poluída
dos escapes dos veículos
leves e pesados, indiferentes.
Mas o meu cão
sorria com a boca
e por todos os dentes,
de língua rosada, vergada
ao peso da alegria sem freio
e os olhos foram dois discursos de paz,
imune ao ódio
do momento e assim
me calou com o seu abanar
de cauda bandeira branca.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

o tempo todo




o tempo todo
a esmagar 
o corpo todo
a doer todo
o tempo
todo
o corpo doendo
esmagando o tempo
todo o corpo
passando no tempo
a doer  todo
a passar todo
no corpo
o tempo
a doer


torto


Ponte 25 de Abril, à noite.


escrever torto
por linhas tortas
com tinta entornada
palavras trôpegas
direitas ao assunto
mal fadadas
farpas
a espetar no afiado
peito
de orelhas moucas

sábado, 5 de dezembro de 2015

Senhor Américo

O senhor Américo tem uma mercearia ao pé da minha casa.
O senhor Américo dá bocadinhos de fiambre aos meus cães quando lá vou.
O senhor Américo gosta de todos os cães das suas clientes.
Não há cão que não goste de visitar a mercearia do senhor Américo.
Ouvi dizer, um dia, que quando o senhor Américo morrer terá a mais longa matilha no seu funeral.
Não creio que exista imagem mais digna e consoladora de um funeral.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

vento divino

Salome, Rafal Olbinski para Strauss



Deponho decapitada
a teus pés
o pedaço da cabeça,
o caroço,
Salomé,
(o pescoço
não chora)
recebe o meu
suicídio benigno,
saboreia.
Não chores
(como se chorasses),
não dances
(como se dançasses),
não te canses.
Chegou ao fim
esse meu longo plano
kamikaze
inflamado p'lo tempo,
um vento divino,
que não havia meio
de aterrar,
mas planando no alto
foi cair no colo
do teu medo,
quando eu era
João,
voluntariamente.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O Tempo

Sand Glass Greeting Card by Michal Boubin


O tempo passa.
O tempo corre.
O tempo voa.
O tempo nunca morre.
O tempo não perdoa.
Por entre os sonhos escorre.
O tempo não pára.
O tempo não volta p'ra trás.
Por vezes até dispara,
parece um capataz.
O tempo tudo cura.
O tempo tudo corrói.
O tempo também depura
e por vezes reconstrói.
O tempo castiga.
O tempo é dinheiro
O tempo nunca desliga.
O tempo é bom conselheiro.
O tempo por vezes urge
como uma bomba-relógio.
Parece um leão que ruge.
O tempo é da morte o presságio.
O tempo é insondável,
cavalga como animal
O tempo é uma doença incurável.
O tempo é sempre fatal.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

ameaça




 
esta ameaça
um longo rastilho a arder
espreito pelo buraco da fechadura
a cortina é vermelha
o piano mecânico é selvagem
as rosas são falsas
há uma ventoinha elétrica
parada
espreito demasiado perto
dentro
intolerável a ameaça
essa visão de um fantasma
entaipado
impotente
como perna
que se transforma numa montanha
e nunca vai a Maomé
espreito a solidão
não há maior ameaça




terça-feira, 17 de novembro de 2015

homem dado




cavalo dado
dente postiço
cavalo suado
pequeno toutiço
cavalo cambado
carapau de corrida
chanfro manchado
badona escondida
bucéfalo das contas
ponéi em pontas


as palavras

algumas
acordam-me de manhã
irritantes
como um despertador
outras
adormecem-me
baladas ao ouvido
na cama
pelo dia dentro
aparecem
fintando-me
raramente
apanho uma ou outra
ainda
não sei
se gostam de mim
eu gosto delas

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

tapete

alguém
enrolado
à entrada da tua porta
faz tempo
feito tapete canino
entras
sais
sem um olhar
um olá
sei de cães à corrente
que recebem mais
compaixão
na malga vazia
de água
passas
sem olhar
sem sentir
um longo uivo
de lobo
no fojo
atónito

ninguém
enrolado
espreguiça-se
e volta a dormir
encolhido

animais humanos


quando o apêndice rebenta
espalhando a flôr carnívora
no peritoneu
cabelos pernas
botas
polegar oponível
armas automáticas
a flôr carnívora a bater
no peito
gritos de aço
aço puro
carnívoro
sólido
braços
luz-escuridão
pernas
velocidade
a flor carnívora a desabrochar
no peritoneu
às golfadas
um rastro de sangue na estrada
animais humanos
em fuga
a flor carnívora
a correr no peito

num mar de mortos
o medo a boiar
na gente



segunda-feira, 9 de novembro de 2015

olhos de sangue



o teu silêncio
não é inocente
tem mãos nodosas
olhos de sangue
olhos de sangue
olhos de silêncio
mãos de sangue
o teu silêncio
tem olhos de sangue
olhos de sangue
mãos de silêncio
passos cegos
o teu silêncio
tem mãos cegas
passos de sangue
olhos de silêncio
olhos de sangue
o teu silêncio
não é inocente
sibila toda a noite
ao meu ouvido
passos cegos
de sangue
olhos de sangue
de sangue
de silêncio












sexta-feira, 6 de novembro de 2015

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

terça-feira, 27 de outubro de 2015

As nossas ofensas

O mal que nos fazem ajuda-nos a perceber o mal que fazemos aos outros. Acreditamos que não será tanto uma violência premeditada mas antes uma incapacidade proveniente de um desconhecimento fortuito. Acreditamos que não é uma mera violência gratuita. Porque um desconhecimento é muito menos grave que a pura ignorância, esse terrível virar de cara consciente. É uma fé. E uma fé tem muito mais força, por vezes, que uma simples certeza.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

21 do 10 de 2015




chega cá
mais perto
mais
ainda me hás-de render
uns versos
dois ou três
(mais?)
p'ra começar
de improviso
a língua entorta
dura
vai enrolar-se
aos cantos
da boca
como cobra
à espreita
um pressentimento
dizem que o futuro
regressa hoje

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

2666, ROBERTO BOLAÑO

Roberto Bolaño era um poeta.
Ninguém melhor que um poeta para saber que a vida dá uma mão à loucura e outra à solidão.
Não é por acaso que tantas das personagens, secundárias e principais, são loucas e outras estão a enlouquecer, a ouvir vozes, a ver uma realidade alternativa, talvez mais verdadeira que as demais.
Há até um jovem polícia entusiasta dos métodos científicos de investigação criminal, um racionalista, que se chama Lalo Cura (La locura...) E nada disto é por acaso.
Temos o poeta louco, o pintor louco internado num hospício, que corta a mão direito para a a incorporar no seu auto-retrato, a jovem mãe louca que abandona o lar, o professor universitário que pendura um livro de geometria no estendal da roupa e tem uma voz na sua cabeça que não lhe dá tréguas.
E os que não estão loucos estão a apaixonar-se, que no fundo é só o reverso da medalha, ou a ante-câmara da verdadeira demência.
Deixo uma citação de um dos loucos secundários: (não me lembro se do poeta louco ou do pintor louco, pois escrevi isto num papel solto e não apontei quem era):
“ O meu amigo (…) acreditava na Humanidade, portanto, acreditava na ordem, na ordem da pintura e na ordem das palavras, pois a pintura não se faz com outra coisa. Acreditava na redenção. No fundo, até é possível, que acreditasse no progresso. A coincidência, pelo contrário é a liberdade total a que estamos condenados pela nossa própria natureza. A coincidência não obedece a leis e se lhes obedece nós desconhecemo-las. A coincidência, se me permite a comparação, é como Deus que se manifesta em cada segundo no nosso planeta. Um Deus incompreensível com gestos incompreensíveis dirigidos às suas criaturas incompreensíveis. Nesse furacão, nessa implosão óssea, realiza-se a comunhão. A comunhão da coincidência com os seus rastos e a comunhão dos seus rastos connosco.”

2666 é um calhamaço de mais de mil páginas, nunca tinha lido um livro tão grande, pelo menos um deste calibre de uma só vez. Bolaño queria que o livro fosse publicado em cinco volumes distintos para que rendesse mais dinheiro pois sabia que tinha pouco tempo de vida quando o escreveu e queria assegurar o futuro financeiro dos filhos. Mas o editor encontrou tal coerência nas cinco narrativas,e qualidade de escrita fora do comum, que achou por bem publicar um só livro composto por cinco partes, os cinco mega-capítulos da obra.
O primeiro livro chama-se “ Os Críticos”. É a história de quatro críticos literários, três homens e uma mulher, de diferentes nacionalidades, que constroem a sua carreira académica em torno de um misterioso escritor alemão em vias de receber um Nobel. Existe um enorme mistério acerca deste escritor. Os críticos, como querem desvendar o enigma, partem numa viagem para o México, onde se supõe que o escritor alemão se esconda. É no México que o resto do livro se passa. Numa cidade inventada, Santa Teresa, que é a cópia ficcionada de Juarez, onde em 1993 começa a ocorrer uma vaga de crimes contra mulheres, fora de comum pela violência e pelo número de vítimas.
Os críticos, uma inglesa, um italiano, um francês e um espanhol, vão estabelecendo uma complexa relação entre eles ao longo da narrativa, o que traz uma forte carga erótica à história. Aliás, este capítulo mete num chinelo, num chinelo de trazer por casa, o tal 50 sombras de Grey.
Os dois capítulos seguintes passam-se no México e têm como título “Fate”, um jornalista americano enviado por um acaso à cidade para investigar os crimes, e “Amalfitano” o tal professor filósofo que está a ficar louco. Amalfitano tem uma filha jovem, como as mulheres que estão a ser assassinadas a um ritmo assustador, e na sua cabeça surge uma voz de denúncia dos horrores que por ali se passam. Bolaño não dá de bandeja a resolução dos mistérios mas no fim do livro, quando se pensa que nada ficou explicado se pensarmos um bocadinho Amalfitano dá-nos a solução do problema, ele conhece como ninguém as razões dos crimes e aponta os culpados. Estou convencida que, apesar das mil e tal páginas, 2666 é um livro para se ler duas vezes.
O quarto capítulo chama-se “Os Crimes” e conta em pormenor as cerca de 300 mortes violentas de mulheres jovens, estudantes e trabalhadoras e as investigações respectivas, se é que se pode chamar “investigação” ao trabalho dos polícias que acompanham o caso, se é que se pode chamar “trabalho” à forma como que estes profissionais lidam com as ocorrências (com a honrosa excepção do jovem polícia Lalo Cura). É um relato exaustivo e impressionante que, no final, nos deixa em suspenso. O que aconteceu? Queremos saber o que aconteceu, quem matou as mulheres? O suspeito na prisão é um bode expiatório? Porque continuam a morrer mulheres a um ritmo alucinante apesar das detenções?
O 5º capítulo não nos ajuda a responder às perguntas. Chama-se “Archimboldi” e conta a história do misterioso escritor alemão. Percebemos no final porque veio ele parar a Santa Teresa. E tudo tem a ver com os crimes. Os crimes fecham o círculo ao serem a causa da vinda dos críticos que estão em “perseguição” do escritor que mais parece um fantasma que quase nunca ninguém conheceu, ninguém sabe muito bem quem é.
E só no fim do livro, quando sabemos que não vamos ter mais respostas, que nos pomos a pensar no problema que nos é deixado em aberto e percebemos tudo. É só juntar os pontos. Bolaño não facilita o trabalho mas as respostas estão todas lá. Eu sei quem matou as mulheres e porque elas morrem. Não vou dizer porque isso é trabalho do leitor. Sem esse esforço o livro não teria a força que tem. É um livro verdadeiramente fenomenal.
Bolaño é um dos maiores escritores de sempre.



quinta-feira, 8 de outubro de 2015

para sempre

a culpa
casada comigo
para sempre
morre

o Tempo e o Medo

Entre o Medo e o Tempo prefiro o Medo. O Medo posso controlar, oTempo não.

riso

o riso vem da terra
raízes fundas
sondando gargalhadas
junto aos veios de água
sobem às folhas
que o vento há-de espalhar
como riso 

the end

o homem é ego
o ego é filigrana
a filigrana é faca
a faca é arma
a arma é morte
a morte é começo
o começo é o fim

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Depois das Eleições




Lembro-me do dia seguinte ao sufrágio que conduziu o Mário Soares à presidência da república pela primeira vez. Tinha dezasseis ou dezassete anos e ainda não podia votar mas aquela foi a eleição da minha vida. Nunca mais voltaria a viver de modo tão intenso uma campanha e um acto eleitoral.
Pois nesse dia, na escola, numa aula de Matemática, com uma professora que tinha sido freira, pelo menos era o boato que circulava, o ambiente era de cortar à faca. “A Democracia é uma coisa muito estúpida!” disse ela virada para a turma, com os olhos chispando de raiva. Olhava para ela, estarrecida, tentado manter a compostura pois sabia que ela falava para mim.
Meses antes, naquela mesma aula da manhã de segunda-feira, tinha havido festa quando o Freitas do Amaral passava à 2ª volta com larga margem e o Mário Soares passava à rasquinha.
Em pleno período de aprendizagem da disciplina de Matemática, alunos e alunas, sob o olhar orgulhoso e feliz da professora, abraçavam-se efusivamente, dando vivas e alvíssaras.
E agora tudo tinha ido por água abaixo. Naquele tempo tinha acabado de perceber a diferença entre Esquerda e Direita. Para surpresa minha estava num liceu maioritariamente frequentado por filhos de gente de Direita. As meninas usavam todas os mesmos casacos de fazenda verde seco, giríssimos, como se sentissem uma necessidade de serem uniformizadas. E elas e eles colavam nas roupas os autocolantes do seu candidato, o candidato da Direita. Eu observava, isolada, calada, a festa dos outros. Todos os jovens, mesmo os não votantes, iam aos comícios, e prolongavam-nos no recinto escolar. Era talvez a febre da descoberta da livre escolha dos nossos destinos, uma paixão política que talvez só seja possível na idade da inocência.
Um dia uma rapariga de outra turma, que conhecia só de vista, apareceu com um autocolante do Mário Soares, que dizia apenas Soares é fixe, com uma bola redonda amarela com um sorriso. Parecia um ícone do Facebook. Foi um escândalo. Senti-me tão inspirada pelo gesto heróico daquela colega que resolvi, no dia seguinte, colar um também. O olhar da turma era fulminante mas o da minha professora de Matemática era aterrador. Nunca mais gostou de mim. Depois daquilo que ela considerou uma derrota pessoal, passou a tomar-me de ponta. Insultou a Democracia e achava que eu era parte do grupo dos tais estúpidos que deram a maioria a um presidente de Esquerda.
Mas a Democracia não é a vitória dos espertos contra os estúpidos nem o seu contrário.
Se ela pudesse prever o futuro naquela época, veria que o seu candidato nem era assim tão mais à Direita do meu. Eu veria que o meu candidato não assim tão mais à Esquerda do candidato da minha professora de Matemática.
Enquanto houver Democracia podemos acreditar, apenas, que ganha a maioria e que, haja o que houver, passados quatro anos, existe uma hipótese de tudo poder voltar a entrar nos eixos. Se a maioria assim o quiser.
E isso é tudo menos estúpido.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

braço de ferro

Ele falava com ela por delicadeza.
Foi respondendo por boa educação.
Mas no braço de ferro do tédio contra a compaixão,
e também porque era desprovido de vaidade,
o primeiro foi mais forte,
que não há pachorra para velhas.

no end

as mãos nos lábios
o fim de todas as histórias inacabadas
as histórias sem paz

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

JOHN CHAUFFEUR RUSSO

Uma vez conheci uma miúda na paragem do autocarro. Quer dizer, vi-a muitas vezes, ela apanhava a mesma camioneta da Vimeca que eu e ficámos amigas. Era mais ou menos da minha idade, talvez dois anos mais nova, era baixinha e tinha cabelo loiro muito comprido e liso. Não me lembro do seu nome. Simpatizava com ela e um dia, não sei bem porquê, acabámos por meter conversa uma com a outra. Coisa rara em mim, falar com estranhos na rua. Mas ela não era propriamente uma estranha, afinal via-a praticamente todos os dias fazia meses. Palavra puxa palavra, fiquei a saber que estudava em Algés e a certa altura convidei-a para ir lá a casa. Ninguém estranhou, era só mais uma amiga. Disse-me que gostava de ler mas que não tinha muitos livros. Gostava de histórias românticas, mas mesmo românticas, daquelas que acabavam bem. Fui buscar-lhe uns livros da Corín Tellado que eram da minha avó e um que me era especialmente querido da Max du Veuzit chamado John Chauffeur Russo. Nunca mos devolveu. A certa altura desapareceu da zona, nunca mais a vi.
Conhecer pessoas na paragem do autocarro, naquele tempo, era tão arriscado como fazer amigos na Internet hoje em dia.
Ainda hoje choro aqueles livros do tempo da minha avó. Eram uma espécie de relíquia sagrada.
Se a memória não me atraiçoasse tanto podia reclamar a minha herança perdida, através do Facebook.


O ZELOTA




Lembram-se daquela anedota que começa assim: " sabem como era aquilo no tempo de Cristo?"?
(um dia eu conto)
Pois eis que chega um livro que conta de modo sério como era de facto a vida no tempo de Jesus de Nazaré. O mesmo que mais tarde veio a ser conhecido como Jesus Cristo.
Reza Aslan é um iraniano que vive desde os 15 anos nos EUA e que se converteu ao cristianismo desde essa altura. À medida que foi estudando a vida de Jesus, (ele é historiador) foi percebendo que havia uma distância grande entre o mito e a realidade. E é isso, precisamente, que ele nos conta neste livro.
Conhecem a sensação de nos tentarem atirar areia para os olhos? Pois "O Zelota" dá-nos a sensação contrária, é um limpar de olhos, um refrescante esclarecedor de vista.
Não vou fazer um resumo porque seria retirar o efeito surpresa que tanto me entusiasmou. Deixo apenas umas pequenas citações:


"O pregador itinerante que andava de aldeia em aldeia a clamar acerca do fim do mundo, com um bando de seguidores andrajosos a arrastar-se atrás dele, era uma visão vulgar no tempo de Jesus - tão vulgar, de facto, que se tinha tornado uma espécie de caricatura entre a elite romana."


" O século I foi uma era de expectativa apocalíptica entre os Judeus da Palestina (...)
Inúmeros profetas erravam pela Terra Santa a transmitirem mensagens sobre o juízo iminente de Deus. Sabemos o nome de muitos desses chamados falsos messias. (...) O profeta Teúdas, (...), tinha quatrocentos discípulos antes de Roma o ter capturado e lhe ter cortado a cabeça. Uma figura carismática misteriosa conhecida apenas como " o Egípcio" reuniu um exército de seguidores no deserto, quase todos massacrados por tropas romanas. Em 4 A.E.C., o ano em que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus de Nazaré nasceu, um pastor pobre chamado Atronges pôs um diadema na cabeça e coroou-se a si mesmo "Rei dos Judeus"; ele e os seus seguidores foram brutalmente mortos por uma legião de soldados. Outro aspirante messiânico chamado simplesmente "o Samaritano", foi crucificado por Pôncio Pilatos ainda que não tivesse reunido qualquer exército nem desafiado Roma, fosse de que modo fosse - indício de que as autoridades, sentido no ar a febre apocalíptica, se tinham tornado extremamente sensíveis a qualquer sinal de sedição. Havia Ezequias, o chefe dos bandidos, Simão de Pereia, Judas o Galileu , o seu neto Menaem, Simão filho de Giora, e Simão filho de Kokba - que declararam todos, ambições messiânicas e que foram todos mortos por Roma em virtude disso. Junte-se a esta lista a seita dos Essénios, (...) o grupo revolucionário judaico do século I conhecido como Zelotas que ajudou a lançar uma guerra sangrenta contra Roma; e os temíveis assassionos-bandidos que os Romanos apelidaram de Sicários (os Homens da Adaga), e a imagem que emerge da Palestina do século I é dum tempo carregado de energia messiânica."


Querem saber o que fez a diferença na hsitória de Jesus de Nazaré, apesar de ter sido morto pelos romanos, tal como os outros todos? Leiam o livro, que Reza explica. E que escrita entusiasmante que ele tem, meu Deus.







domingo, 27 de setembro de 2015

Carta de amor

Selei o envelope
com uma generosa dose
do meu ADN.

gatumanos




Naquele tempo o dia tinha apenas dois momentos, o nascer e o pôr-do-sol. O resto do Tempo estava parado.
Naquele tempo não havia rios tingidos de sangue nem mares atulhados de lixo.
Naquele tempo a vingança chegara em naves vindas de um ponto perdido doutra galáxia.
Naquele tempo tudo era feito de raiz sem excessos nem defeitos.
Naquele tempo o Rei do planeta cuidava da sua casa.
Naquele tempo a moeda de troca era a sabedoria.
Naquele tempo o Homem ajoelhava e os animais e plantas suspiravam de alívio.
Naquele tempo as armas era as palavras.
Naquele tempo as palavras picavam a carne como garras,
amarravam as mãos como cordas
armavam as bocas como balas.
Naquele tempo a morte era limpa, simples e implacável,
num único golpe de sangue silencioso.
Naquele tempo o Rei da Terra convidava o vento a entrar e a sair conforme as suas conveniências.
As trevas chamavam às trevas o que era das trevas.
A luz chamava à luz o que era da luz.
O esquecimento chamava ao esquecimento o que era do esquecimento.
Tudo era ordenado e conhecido. Mas não era conhecido do Homem.
Naquele tempo o Homem era um punhado de cinzas a arrefecer na noite.
Naquele tempo o fogo jamais poderia existir sem ser domado.
Naquele tempo o medo estava em vias de extinção.  A raiva tinha sido erradicada sem vacinas.
Naquele tempo o Tempo estava parado. Tinha desistido de atacar.










terça-feira, 22 de setembro de 2015

domingo, 20 de setembro de 2015

Milagres

Acredito em milagres. Milagres humanos, aqueles que são as pessoas a fazer. Sou capaz de esperar por um milagre a vida toda.

Ambição

Fui um dia acusada de falta de ambição. Era alguém que me conhecia mal ou entendia pouco do significado da palavra.

infantil

Sou um bocado infantil. Mas não sei se isso é mau ou bom. Vou pensar nisso depois de comer este chocolate.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

mosca

O amor é uma mosca,
fruta
que não se apanha
nem com vinagre.

Os nossos dias




Mal se acorda de manhã,
depois de uma noite inteira de espera,
o dia espreita.


O dia que despeja
a sua tristeza líquida
contaminando-nos de mágoa;
o dia que suga os fluídos
do corpo até à exaustão;
o dia anónimo que mal se sente,
o dia de sorte, demasiado breve,
espumando-se no tempo;
o dia de azar, que mostra o dedo
matraqueando a tecla
obsessiva de um piano;
o dia sorrateiro que nos mata.

pedra em poço

O poema é pedra
atirada ao poço.
De mão em concha
na orelha, fico
à espera do barulho,
o impacto na água.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

resgate

Dantes ficava horas a olhar para ti e o meu desejo capturava-te, pelo menos temporariamente, de uma forma precária, eras meu.
Agora já não tenho resgate para tal sequestrador.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

QUANDO ACONTECEM COISAS MÁS ÀS PESSOAS BOAS




Um dia comprei um livro chamado “Já Não Sofro Por Amor” da Lucía Etxebarría, atraída talvez pelo sub-título: "um livro aspirina".
Sim, sou céptica em relação aos livros de auto-ajuda. Mas achei graça a autora estar a desmontar a farsa mesmo na capa, nas barbas do leitor. Logo achei que devia dar uma espreitadela. Gostei muito, principalmente por Lucía ser tão honesta quando à utilidade do seu livro. Este servirá tanto quanto uma aspirina numa dor de cabeça. Quem tem um problema grave na vida não vai encontrar a solução num livro.
Mas, de facto, a autora desmascara o Amor como grande Mito que prende as mulheres em relações insatisfatórias e muitas vezes indignas, o Amor como justificação romântica da dor. Quantas canções de amor , quantos filmes de amor não foram criados para manter as mulheres debaixo da rédea curta de um amor doloroso e de uma relação quantas vezes vexatória?
O livro aspirina pode não curar a maleita mas é um indício de que a solução definitiva da patologia é uma realidade. E por isso vale pena ser lido.


Se o livro da Lucía era o livro aspirina este “Quando Acontecem Coisas Más às Pessoas Boas” poderia chamar-se livro tónico fortificante.


Este é um livro para as pessoas que colocam Deus no trono absoluto da omnipotência. E também para os que acham absurda a ideia de um Deus omnipotente perante a tragédia constante que acompanha a vida da Humanidade.


Desde cedo nos ensinam que Deus é todo poderoso, a Deus nada é impossível, dizem-nos. E que existe uma ligação directa entre as ofensas a Deus e os castigos recebidos como pagamento justo destas prevaricações.
Ao crescermos verificamos, não sem espanto, que a vida não se passa exactamente como nos prometeram. A lição mais dura, que se aprende, mais cedo ou mais tarde, é que a vida não é justa. Mas então porque é que Deus permite que aconteçam coisas más às boas pessoas? Esta é a pergunta que Harold Kushner se propõe responder neste “pequeno” livro.
É uma obra interessante, em primeiro lugar, porque o autor é rabino, um profissional da religião, numa pequena cidade americana, um homem que é chamado a consolar outros homens perante calamidades, nas horas trágicas e dolorosas e que está constantemente a ser confrontado com esta dúvida terrível sobre a bondade e a justiça divinas. Este é um autor que sabe do que nos fala, e dará uma resposta que vem de dentro da Igreja, neste caso judaica.
Em segundo lugar, porque Harold tem uma história de vida muito relevante para a matéria em questão. Teve um filho que nasceu com progéria, uma doença genética que se caracteriza por um envelhecimento precoce manifestado nos primeiros anos de vida. Há apenas 100 casos registados em todo o mundo até agora. Aaron, o filho de Harold morreu de velhice precoce aos 14 anos de idade, e este livro é dedicado à sua memória.
Portanto a ele, um homem devoto a Deus, sem pecados de assinalar, aconteceu a pior coisa que pode suceder a um pai: a morte de um filho em criança. Ainda por cima uma morte anunciada pouco tempo após o nascimento. Podia ter ficado à beira da descrença, no entanto conseguiu ultrapassar a sua crise de fé.
Onde terá ido procurar respostas para as dolorosas perguntas? À Bíblia, pois então, mais concretamente ao livro de Job.
E o que nos conta então a história de Job?
Job era um homem do melhor que podia haver. Temente a Deus. Cumpridor das suas leis, tudo. Como seria de esperar, a vida corria-lhe bem. Estava tudo certo. Mas eis que a páginas tantas a desgraça abate-se sobre ele. Morrem-lhe os filhos, morrem-lhe as filhas, incendeiam-se as colheitas e as casas., fica sem nada. Apesar disso aguenta estoicamente e diz: "o Senhor mo deu, o Senhor mo tirou".
Mas a desgraça não acaba aqui. Em breve é atacado pela doença, "(...)  uma lepra maligna, desde a planta dos pés até ao alto da cabeça. E Job pegou num caco de telha para se raspar com ele e ficava sentado sobre a cinza."
Neste ponto da história entram os amigos: " Três amigos de Job- Elifaz de Teman, Bildad de Chua e Sofar de Naamá ao saberem das desgraças que lhe tinham sucedido, partiram cada um da sua terra e combinaram juntar-se a fim de compartilharem a sua dor e o consolarem. E quando de longe levantaram os olhos, não o reconheceram; puseram-se então a chorar, rasgaram as suas vestes e espalharam pó sobre as suas cabeças. Ficaram sentados no chão, ao lado dele, sete dias e sete noites, sem lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande."
Mas claro, eles tinham vindo de longe para o consolar, e foi isso que iriam tentar fazer. Ora eles tentam dar um sentido ao tormento de Job, se ele sofre é porque Deus lhe viu alguma falha que merecesse castigo. 
Neste ponto Job revolta-se. Ele não vê razão nenhuma para ser punido por Deus, não fez nada de mal, está inocente. É uma pessoa boa à qual estão a acontecer coisas más, muito más. Os amigos de Job, de saúde intacta e com uma vida boa, não querem crer que aquela tortura toda não tenha uma razão de ser, uma lógica no mundo justo de Deus. Mas Job responde sempre reclamando a sua inocência. O livro de Job é este diálogo entre eles, páginas e páginas de vários debates em que o homem sofredor não reconhece a sua culpa, porque ela de facto não existe. O castigo é injusto.


Se Deus é omnipotente e Job é um homem justo não haveria qualquer razão para que sofresse tamanhos tormentos. Job afirma insistentemente que é um homem justo. Job é justo, diz aos amigos. E estes acham que tal não é possível pois Deus é omnipotente. Duas premissas totalmente incompatíveis.
Então Job, de consciência tranquila, dirige-se a Deus e pede a sua intervenção, se ele pecou que lhe indique os seus crimes.
Deus aparece mas não para apontar o que quer que seja a Job. Diz assim: " (...)Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? (...) Sabes quando nascem as crias das corças? Assististe ao parto das gazelas? Contaste os meses da sua gravidez e conheces o tempo do seu parto? (...)"
É um longo e belo poema, esta resposta de Deus a Job, vale a pena ir lê-lo na Bíblia.
O que Harold S. Kushner nos explica é que Deus quer que Job entenda que isto de criar o Mundo não é tarefa fácil. E que temos de concluir que Deus não é omnipotente. Quando acontecem coisas más às pessoas boas Deus não gosta, mas nada pode fazer para o evitar. Não se trata de um castigo. É simplesmente uma inevitabilidade. Se um homem cai de uma janela de parte a coluna no chão isso deve-se à Lei da Gravidade. Se Deus cancelasse a Lei da Gravidade de cada vez que um homem cai de uma janela, com a quantidade de homens a caírem de janelas, uns por vontade própria, outros por vontade alheia e outros por acaso, seria o caos absoluto no Universo. 
Portanto as Leis gerais foram feitas no início do Mundo e depois as coisas seguiram o seu curso.


Fiquei muito bem impressionada pelo modo claro com que o autor nos explica esta verdade tão importante: Deus não castiga, Deus não pode fazer qualquer milagre. Deus não pode evitar desgraças naturais ou sofrimentos causados pela mão do Homem. O Mundo é como é.
“esta é porventura a ideia filosófica chave para tudo o mais que proponho neste livro. Seremos capazes de aceitar a ideia de que algumas coisas acontecem sem razão, que existe uma certa casualidade no universo? Algumas pessoas não conseguem lidar com essa ideia....”
E se Deus oferecesse uma recompensa por cada boa acção praticada pelo Homem deixaria de haver espaço para a liberdade de fazermos o que é certo. Tudo seria resumido a uma jogo de interesses: faço isto para receber aquilo. Fazer o bem sem consequências, eis o verdadeiro sentido do livre arbítrio.
Harold Kushner fez-me ir à Bíblia ler o livro de Job e qual não é o meu espanto quando verifico que no início do mesmo existe um resumo explicativo que nos passa exactamente a mesma ideia:


"Em suma, neste livro recusa-se que a causalidade de todo o sofrimento deva ser atribuída, seja ao homem, seja a Deus. A ética e o ciclo da vida com os seus percursos naturais de sofrimento e morte são dois processos coexistentes, mas autónomos. Pretender misturá-los é simplista e inútil. A justiça e a acção de Deus não se podem medir com as regras de equivalência que são normais em justiça distributiva. (...) A sua atitude básica perante o sofrimento não é de moral legalista, nem é pietista, nem expiacionista. É uma atitude de corajoso acolhimento do real; é contemplativa e verificadora; é um caminho de sabedoria. (…)


Kushner no resto do livro explica-nos como um Deus que não é omnipotente continua a ter um papel importante na vida do Homem.


Termino com mais uma citação do “Quando Acontecem Coisas Más às Pessoas Boas”:




“ No fim do século XIX e início do século XX o francês Emile Durkheim foi um dos fundadores da sociologia. Neto de um rabino ortodoxo, Durkheim estava bastante interessado no papel que a sociedade desempenhava na conformação das perspectivas éticas e religiosas dos indivíduos. Passou anos nas ilhas dos Mares do Sul a estudar a religião dos povos primitivos nativos a fim de descobrir como era a religião antes de ser formalizada com livros de orações e clérigos profissionais. Em 1912 publicou o seu importante livro As Formas Elementares da Vida Religiosa, que que sugeria que o principal objectivo da religião começara por ser, não o de pôr as pessoas em contacto com Deus, mas sim umas com as outras. Os rituais religiosos ensinavam as pessoas a partilhar com os seus vizinhos as experiências do nascimento e da morte, de jovens que se casavam de pais que morriam. Havia rituais de plantação e colheita, para o solstício de Inverno e para o equinócio de Verão. Dessa forma, a comunidade seria capaz de partilhar os momentos mais felizes e os momentos mais assustadores da vida. Ninguém tinha de os enfrentar sozinho.”








quarta-feira, 9 de setembro de 2015

rascunho


memória sombria



vi-me
à mesa
com o futuro assassino
trazia a tira-colo
uma lambisgóia aperaltada
a raiar a anorexia
que debicou dois segundos
de empadão
(o prato favorito do meu irmão)
ele eloquente
de olhar suíno
tão eloquente quanto
um homem de olhos suínos pode ser
e eu a pensar num filme de Almodôvar
(Que Fiz Eu Para Merecer Isto)
e no Pai Tirano
(ele há tanta pessoa importante)
a descobrir
que a liberdade suprema
é a liberdade de escolher
os amigos
com quem jantamos

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Mar





O Tempo é um mar.
A onda vem e leva
os olhos, vai cuspir
(velha serpente)
um par de óculos.
Vai engolindo os ossos
como uma praia de areia
a derreter
(derrota de água).
Dão à costa
despojos nocturnos,
bengalas, dentes falsos,
andarilhos, algálias,
bailado trôpego
do nosso naufrágio obrigatório.



segunda-feira, 24 de agosto de 2015

hedonismo

Experimentei o hedonismo por uns tempos. Cheguei à conclusão de que não me satisfazia por aí além. Há-de haver mais e melhor.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

insanidade temporária




Vou alegar, em minha defesa,
insanidade temporária,
senhor juiz, alegre-se,
não era eu.
Alguém na minha cabeça
tomou a pessoa estranha pelo próximo,
ama o teu próximo, disse a voz,
e ela obedeceu.
Eu não estava em casa,
em mim, fui
testemunha de acusação,
advogada oficiosa,
do diabo, de recurso,
observando de fora,
parar não podia.
Não estava nas minhas mãos
lavadas, (Pôncio, camarada Pôncio!)
ouviu a voz:
obedeceu.
Assisti à matança,
uma chuva de esquírolas,
estrelas caídas,
sonhos desfeitos,
pouco sangue, pouco chão,
uma morte limpa, ainda assim,
outra atenuante.
Voltei agora, senhor juiz,
cumpro a pena.

domingo, 9 de agosto de 2015

empatias




empatia
não empata
empatia
empatia
não impede
empatia
porque o coração
ou é grande
ou é de pedra
ou é de lama
ou não existe

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

juventude

Afinal, menina,
nem sequer és bonita.
Essa beleza é um empréstimo fugaz
que vais pagar
com altas rugas,
juro-te.

milagre



Tivesse eu sido uma madame Von Meck e talvez as coisas pudessem ter sido diferentes, que o dinheiro faz milagres por certas amizades. E neste caso só um  milagre.

sábado, 1 de agosto de 2015

diário

O asfalto. O traço descontínuo. O volante. A chave. O pires. A cadeira. O ecran. O telefone. O gargalo. O botão. A seringa. O papel. O toque. A luva. O manípulo. O volante. O traço descontínuo. A porta. A mesa. O talher. O pires. A chave. O volante. O traço descontínuo. O mosaico. O tapete. O auto-clave. A lâmpada. O som. A lâmina. A caixa. O teclado. O papel. O trinco. O volante. O manípulo. O traço descontínuo. O asfalto. A calçada. O degrau. A porta. A chave. A cadeira. O talher. A torneira. O pano. A escova. O lençol. O relógio.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Lua azul




Lua azul
não existes
não me assistes
a língua azul
essa doença de ovelhas
é real
e dura
língua, a flauta
dedos roxos
do destino
tocando balalaicas
russas
dentro das bonecas
russas
à noite
no cadeirão, o livro
cai aos pés
o sonho
as pálpebras fecham
a festa lá fora
multidão azul
música
uma pessoa
cada vez mais só
mais Lua
mais longe

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Abandonada



desliza na tenra 
e luzidia noite
abandona-te à escuridão
discreta e leve
cavalga a garupa
profunda e negra
não vás
no entanto
em modo clandestino
previne-te  
acautela-te
com o título
oficial do reino
contacta a tua freguesia
e desfruta

terça-feira, 21 de julho de 2015

metáfora



Um homem sem cabeça, no meio do nada, à deriva num barco, com um cão à proa. Uma mão invisível que o conforta. Uma língua rósea que parece dar bênçãos à viagem. Podia ser uma metáfora.

pão




da poia
o pão

quinta-feira, 9 de julho de 2015

tem gente



bati à porta
tem gente
não ouvindo
entrei
o espectáculo da solidão
olhos nos olhos
nunca é bonito
nem olvidável

sexta-feira, 3 de julho de 2015

a boa queda

WashingtonTrapeze03_Veronique Vial



caio em mim
no avesso
da queda
os olhos são asas
avançam no espaço
travam no chão

sexta-feira, 26 de junho de 2015

OS MEUS SENTIMENTOS




"Conheço o amor de ouvir falar."


Uma história de desamor. De como o desamor pode ser uma força avassaladora que tudo varre, que tudo absorve, que tudo leva à frente, não deixando ficar nada de pé.
Um livro muito bem escrito mas nem por isso fácil de ler. Só aconselhável a homens e mulheres "de barba rija". Não esperem desta leitura um modo de entretenimento. Há aqui muito dedo a enterrar-se em feridas para que a leitura nos seja leve.
Cada personagem é gente que não foi amada. E tudo o que lhes acontece é consequência dessa falha.

"Conheço o amor de ouvir falar." 
É uma frase que vai sendo repetida, como outras frases que também se repetem mas esta para mim é a essencial. Quando as pessoas conhecem o amor de ouvir falar não ficarão a salvo. Cada um de nós precisa do amor para se salvar. Quando ele falha a vida vai ser um corrupio na busca de salvação. Mesmo depois da morte. Tudo em vão.
Violeta é mãe de Dora, filha de Celeste e de Baltazar, irmã de Angêlo. E todos se ligam por laços de desamor excepto a relação avós/neta, um pequeno oásis de ternura no meio da violência de sentimentos que abunda na narrativa.
Comprei este livro na Feira do Livro deste ano, o único livro que comprei na Feira deste ano. Costumo arruinar-me na Feira mas este ano não me pude dar ao luxo. Mas tinha de ler este livro. Tenho cerca de 30 livros em lista de espera em casa, um deles também é da Dulce Maria Cardoso mas este não podia ficar adiado. A curiosidade falou mais alto. Isto porque tinha lido uns dias antes uma entrevista a vários escritores, nem me lembro onde, sobre o contacto deles com os leitores, na Feira do Livro.
A Dulce Maria Cardoso contou o caso de um senhor que se aproximou dela, numa destas ocasiões, para lhe dizer que tinha sido um trauma enorme ter lido "Os Meus Sentimentos". Não sei se ele falou em "maldade" que a autora lhe teria feito. Dulce propôs-lhe a devolução do dinheiro e eu achei a resposta simplesmente adorável. E a partir daí tinha de perceber o que havia levado o senhor a dizer aquilo. Pois de facto percebo bem, agora, o que quis dizer.
Mas nem eu nem o tal senhor queremos o nosso dinheiro de volta. Queremos é ler mais livros da Dulce Maria Cardoso. Todos os que ela escrever, muitos, muitos.

terça-feira, 16 de junho de 2015

A MÃO QUE NOS OPERA (confissões de um cirurgião sobre uma ciência imperfeita)



Diz João Lobo Antunes, no prefácio desta obra: “por mim prescrevia este livro como leitura obrigatória para todos os médicos”.
Eu acrescento que seria bom também para veterinários, por tudo o que têm em comum com os médicos. Com eles partilhamos a falibilidade, o mistério e a incerteza. Três características da nossa profissão que dão título às três partes distintas do livro de Atul Gawande.
Mas penso que o livro tem também interesse para todos os doentes ou doentes em potencial (todos nós), porque não há quem não sinta vontade de espreitar para lá da cortina e ver o que se passa do outro lado.
Tenho verificado que há uma grande parte de pessoas que julga a medicina como uma espécie de magia, onde tudo se resolve de forma automática. O médico olha, vê o que o doente precisa e aplica uma injecção que imediatamente resolve o problema.
Na medicina veterinária acontece a mesma coisa. Um dia um grupo de amigas trouxe-me à consulta um gato encontrado na rua em muito mau estado. O animal mal se mexia, extramente desidratado, malnutrido, febril. Expliquei que teria de o pôr a soro endovenoso e proceder a análises, eventualmente iria precisar de mais meios de diagnóstico, como RX ou Ecografia, uma vez que nada se sabia da história clínica dele e podendo estar afectado de várias doenças possíveis. Como resposta obtive uma pergunta: “em vez disso tudo não lhe pode dar uma injecção para ele melhorar?”
Por outro lado existe o grupo de pessoas que considera, como diz Atul Gawande, “ a medicina como um campo organizado de conhecimento e procedimentos. Mas não é. É uma ciência em mudança constante, de informação incerta, de indivíduos imperfeitos e , ao mesmo tempo de vidas em jogo. A ciência está presente nas coisas que fazemos, sim, mas o mesmo acontece com o hábito, a intuição e às vezes a conjectura pura e simples. O hiato entre aquilo que sabemos e aquilo que pretendemos atingir persiste. E esse hiato complica tudo o que fazemos.

Também me atraiu o facto do autor ser cirurgião e escrever sobre essa área da medicina.
“Nem toda a gente aprecia os atractivos da cirurgia. Quando somos estudantes de Medicina e estamos no bloco operatório pela primeira vez e vemos o cirurgião encostar o bisturi ao corpo de alguém e abri-lo como um fruto, ou estremecemos de horror ou ficamos fascinados. Eu fiquei fascinado. Não foram só o sangue e as s vísceras que me fascinaram. Em primeiro lugar, foi a ideia de que uma simples pessoa tivesse a autoconfiança suficiente para usar aquele bisturi.”

É um livro que nos agarra logo na primeira página e depois do acabar sentimos que queremos ler os outros que Atul tiver escrito. Eu fiquei fã.

sábado, 13 de junho de 2015

O Encantador de Memórias


Chegara antes da hora marcada. Depois de um bom bocado sentada no café da esquina esperava agora na rua em frente pelas duas da tarde.
Não trazia relógio. De modo que não encontrava outro remédio senão retirar, a intervalos de tempo tão regulares quanto lhe era possível, o telemóvel da mala para ver quanto faltava. Estava nisto há quarenta e três minutos e já conseguia manter uma constância de três ou quatro desde os últimos dez. Estava quase. Quando chegou o momento faltaram-lhe as forças. Sentia fugir-lhe a coragem. Para quê? Por quê? O que pretendia com aquele encontro?
Não era tão óbvio quanto poderia parecer à primeira vista mas, por teimosia ou para não dar parte de fraca, obrigou-se a ir até à entrada do prédio. Ouviu um zunido abafado ao premir a campainha do terceiro andar direito. O trinco soltou um estalido e a porta abriu. Era pesada, de madeira, e só com esforço, mais por nervos do que por falta de músculo, a empurrou para entrar. Subiu os lances de escadas devagar. No patamar podia ver que a porta do apartamento estava entreaberta. Aproximou-se e não viu ninguém à sua espera. Bateu com os nós dos dedos suavemente. O som saiu a medo e logo se ouviu: “entre!”
Caminhou por um corredor longo no qual contou quatro portas de cada lado fechadas. Ao fundo, conseguia ver luz natural que se propagava tanto do compartimento da esquerda como do da direita. Mas antes que tivesse de adivinhar a direcção que teria de tomar, o homem assomou-se à entrada do lado esquerdo.
- Como está? - estendeu-lhe a mão sorrindo ligeiramente sem perder o seu ar grave.
- Muito obrigada por me receber.
- Ora essa, eu é que agradeço. Sente-se.
Era uma espécie de escritório ou sala de estar com muitos livros. Estantes escuras e pesadas preenchiam quase todas as paredes. Junto à janela estava uma secretária. E havia um sofá comprido em frente de um relógio de pêndulo pendurado na parede. O som da cadência dos segundos era bem audível.
O homem ofereceu-lhe um lugar na ponta do sofá e sentou-se num cadeirão de verga em frente a ela, por baixo do relógio de pêndulo, com o tique-taque metálico quase a servir-lhe de chapéu.
- Sente-se confortável? - perguntou com uma simpatia tímida na voz.
- Sim, sim, estou bem - mentiu ela delicadamente.
- Não se preocupe. Daqui a nada vai sentir-se mais à-vontade. É tudo uma questão de hábito. O que mais custa é começar.
Ela olhava-o com admiração. Estudava-lhe as feições. Os olhos pequenos e encovados de um azul acinzentado que lhe trazia uma tristeza quase dolorosa ao semblante, eram emoldurados por umas olheiras fundas e trágicas. O cabelo de um loiro sombrio era comprido mas escasso. E a barba, uma pêra bem aparada, deixava adivinhar um tom mais claro que o do cabelo. Não era bonito mas exercia sobre ela uma estranha atracção.
- Quer que comece? - Perguntou-lhe hesitante.
- Quando quiser. Quando se sentir à vontade - respondeu ele, tranquilizador.
- É o que diz: o que mais custa é começar. Mais vale começar de imediato:

Ele era um misto quase impossível de elegância e rusticidade. Muito mais velho que eu. Creio até que poderia ter idade para ser meu pai. Tinha uns olhos azuis muito claros, muito vivos e umas rugas ternas aos cantos dos olhos e da boca. Exibia auto-confiança. E, no entanto, dava sinais inequívocos e pungentes de desamparo. Ele era meu mestre. Mas em pouco tempo comecei a sentir uma pulsão irresistível em ir em seu auxílio. Comecei a sonhar com ele, a ter pesadelos em que ele caía de um precipício gritando o meu nome. Acordava com a sensação de ter sido eu a cair. E passava o resto dos dias inquieta, com a vaga noção de que teria de tomar uma resolução que me tirasse daquele estado.
Um dia, o pesadelo foi particularmente aterrorizador ao ponto de ter empapado os lençóis com suor. Tornou-se nesse momento claro que seria a sua intérprete. A pessoa que ofereceria ao mundo a sabedoria dos seus pensamentos codificados.
Ele era um grande professor. Um grande anatomista. Que se tornou também, um pouco por acaso, num grande artista plástico.
A universidade era, considerando o panorama das universidades a nível mundial, no mínimo, obscura. Mas por um acaso do destino, os seus desenhos, no quadro, a giz, durante as aulas de anatomia para os alunos do 2º ano de medicina, com as duas mãos ao mesmo tempo, foram filmados e divulgadas na Internet.
Na outra ponta do mundo, um outro anatomista, desta vez de Harvard, deu com o vídeo e achou que estava a ver a reencarnação de Andreas Vesalius, o pai da Anatomia do século XVI. Havia a semelhança física inegável, mas sobretudo havia a paixão que transparecia nas imagens. Ficou famoso depois de uma exposição de arte em Boston. A filigrana de nervos ou de vasos sanguíneos dos seus desenhos do corpo humano desenhado num quadro preto, com as duas mãos em simultâneo percorreram o mundo.
Tão ou mais bizarra que a sua maneira de desenhar era a sua condição linguística. Em relação a questões científicas, o discurso era perfeitamente normal. Mas em relação à vida do dia-a-dia, a sua linguagem era tudo menos comum. Não falava um idioma normal. Expressava-se utilizando nomes próprios apenas. A comunicação com as pessoas tornava-se praticamente impossível. O que, de certo modo, ampliou o interesse do público pela personagem.
Foi então que apareci. Era sua assistente há pouco mais de meio ano quando decidi decifrar o seu código de linguagem. Foi um salto de fé considerar que havia um código de linguagem num discurso aparentemente desconexo constituído por listas de nomes próprios, quase exclusivamente de mulheres.
Mas estava determinada. Pensava que só assim poderia acabar com os pesadelos.
Demorou-me seis meses a decifrar o código. Obedecia a uma lógica enviesada e pouco clara. Havia palavras que se obtinham facilmente por junção das iniciais do nomes próprios pronunciados. Por exemplo: Um simples “bom dia” era “Balbina-Olga-Maria-Dina-Isabel-Andreia”. Uma das frases que dizia sempre de manhã, quando nos encontrávamos ao pequeno-almoço.
Mas havia outras frases que a letra-chave era a segunda. Outras a terceira e ainda outras em que a posição da letra-chave alterava-se do primeiro nome de mulher para o segundo.
Depois havia ainda as frases em que apareciam os nomes de homem. Geralmente isso indicava um sentimento de frustração ou raiva. Mas como era uma pessoa calma estas eram frases raras e por isso mais difíceis de decifrar.
Tornei-me quase tão célebre quanto ele. Pelo menos no meio académico. Publiquei um considerável número de artigos nas revistas de referência das mais variadas áreas, desde a neurologia, da terapia da fala e principalmente de criptologia onde alcancei um estatuto considerável.
Não foi fácil conquistar a confiança daquele homem extravagante e macambúzio. Passava semanas sem dizer mais do que duas ou três frases por dia. Mas, por vezes, ao olhar para mim mais demoradamente, conseguia antever uma solidão feroz, uma tristeza dolorida. Então sentava-me junto dele e pegava-lhe na mão. Ficávamos horas de mãos dadas sem dizer palavra. Eu sem dizer palavra. Ele sem dizer nome. E assim com o passar dos meses fomos ficando mais íntimos, até me tornar sua amante.
Foram tempos de grandes convulsões emocionais. Por um lado, estava a viver uma relação fisicamente muito intensa. Por outro lado, o problema de linguagem do homem trazia entraves sérios à nossa paixão.
Não era fácil, no acto do amor, ouvir nomes de mulheres e manter uma total abstracção. Acabei por lhe pedir que permanecesse em silêncio enquanto me beijava, enquanto percorria o meu corpo com a boca, enquanto me tomava nos braços e me penetrava. Ele concordava, cheio de compreensão. Mas no momento do êxtase perdia o controle e tinha de falar: “Sílvia!... Sílvia!... Sílvia!... Sílvia-Ivete-Madalena!
Era sempre a mesma sequência de nomes. Onde os outros homens diziam “sim”, ele chamava a Sílvia, a Ivete e a Madalena. Claro que isso roubava-me a concentração impedindo-me de atingir o prazer completo. Pensei que bastaria ter paciência que a frase entraria na nossa rotina e deixaria de me causar problemas mas foi exactamente o contrário.
Ao fim de uns meses valentes de Sílvias, Ivetes e Madalenas comecei a sentir um desconforto inquietante. Era a Sílvia que me causava mais irritação. Imaginava que aquele nome, naquele momento tão crucial, teria de significar qualquer coisa mais, não podia ser por acaso, não podia ser só o vocábulo de onde se podia retirar a letra s de “sim”. Se assim fosse porque não teria escolhido Sofia, Sónia, Selma, Sabina, sei lá, qualquer outro nome?
Tentei investigar, inquirir discretamente sobre o seu passado amoroso. Em vão. Quando sentia a minha curiosidade, a minha desconfiança, usava os nomes masculinos muito difíceis de decifrar e era com esforço que acabava por perceber que me dizia ser eu a única mulher da sua vida. Coisa que, obviamente, eu não acreditava. Contratei, a certa altura, um investigador particular, para deslindar as suas origens. Foi tarefa árdua, pois o homem tinha vindo das ex-colónias. Dei por mim a imaginar uma Sílvia africana. E nada de concreto se concluiu.
Ele compadeceu-se do meu sofrimento. Prometeu controlar os devaneios verbais no momento do clímax mas era tão grande o seu esforço que a expressão facial de masséteres contraídos acabava por me distrair do desejo. Mesmo de luz apagada eram os sons abafados que fazia na tentativa de não falar que me diziam que as Silvias queriam sair, que ainda lá estavam.
Assim fui vivendo em permanente estado de insatisfação.
A nossa vida social, no entanto ia de vento em popa. Éramos convidados para os mais diversos eventos. Inaugurações de exposições, peças de teatro, palestras de conferencistas estrangeiros de todas as áreas científicas, enfim, estávamos em todo o lado.
Havia sempre um interesse desmesurado em ouvir o professor falar e saber, através da minha pessoa, o que queria ele dizer com aquele chorrilho de nomes de mulheres. Era uma ave rara que todos queriam ver ao vivo e a cores. E no entanto, tirando as palestras sobre Anatomia e as suas aulas para o curso de Medicina, ocasiões em que falava português comum, tudo o que dizia no seu idioma fabricado ou inato, coisa que estava ainda por determinar e era alvo de muitas teorias, não passava de frases corriqueiras: “foi uma palestra muito interessante”. Que neste caso soava como um rebuscado desfilar de nomes: Fernanda-Olga-Isabel Núria-América-Natércia Paula-Adélia-Luísa-Eva-Sofia-Teresa-Rita-Alexandra Amanda-Dulce-Micaela-Itelvina-Joana Ilda-Nlema-Tânia-Elsa-Rosa-Ema-Simone-Susana-Alberta-Nádia-Telma-Eunice. Era uma frase em que alternadamente interessava a primeira letra e a segunda das cinco sequências de nomes. Tornou-se para mim numa frase batida. O que acaba por facilitar em boa medida o meu trabalho.
Pensava em sexo o tempo todo. Ele sentia-se lisonjeado por ser tão requisitado por mim. Não lhe passava pela cabeça que isso seria fruto de uma problema latente. Era demasiado ingénuo para o perceber. Ou demasiado indiferente.
Com o tempo, o meu corpo acabou por entender que não adiantava continuar a investir naquela relação e deixei, involuntariamente, de ter interesse físico nele. Habituado como estava a não ter de me procurar, por preguiça ou por orgulho tentou aguentar-se por sua conta. Até que finalmente a meio da noite após muitas horas revirando-se na cama sem conseguir dormir com a excitação, abraçou-me bruscamente sussurrando: “Patrícia-Olga-Rita Fabiana-Aida-Vanda-Olinda-Ronalda, Patrícia-Olga-Rita Fabiana-Aida-Vanda-Olinda-Ronalda!”
Eu cedi, comovida, contente por saber que lhe dava prazer e alívio. E durante mais um par de semanas ele permaneceu no seu canto tentando incomodar-me o menos possível. Até chegar ao limite da sua resistência de saudade pelo meu corpo. Esta passou a ser a nossa rotina sexual. Mas sempre, sempre com as Sílvias finais, vocalizadas ou por vocalizar. Nunca esquecidas nem aceites por mim.
O que nos aguentou tanto tempo juntos foram os cavalos. Todas as tardes passeávamos com os cavalos. Ele montado no seu Lusitano de cor tordilha e eu com a minha égua de Sorraia pela guia. Desculpava-me com as vertigens para não montar. No fundo o que não gostava era da sensação de dominância em relação ao animal. Preferia fazer de conta que a égua era simplesmente um cão de grande porte que me acompanhava. Já ele, sentia-se um monarca inglês em cima do magnífico equino, pronto para conquistar o mundo.
Eram tardes tranquilas. Ficava sentada a vê-lo galopar ao longe, agarrada às pernas flectidas, de cabeça repousada de lado nos joelhos. A égua, por vezes pressentindo-me triste, vinha mordiscar-me delicadamente a face como que a consolar-me do desgosto. Naqueles momentos considerava que a vida era boa, nem tudo eram bizarrias e complicações. O mundo também tinha lugares serenos e tranquilizadores.
Uma noite, num jantar de gala, na tomada de posse do novo governo municipal, alguém perguntou ao professor o que pensava sobre a problemática do terrorismo. Vinha isto a propósito do ataque ao World Trade Center e todos estávamos ainda em estado de choque com os acontecimentos Fez-se silêncio para que se ouvisse o excêntrico sábio. Seguiu-se um chorrilho de nomes próprios femininos como seria de esperar e de seguida já as cabeças todas apontavam para mim. Traduzi espontaneamente, já nem precisava de pensar muito tal era a minha prática: “o gato das botas é muito meu amigo!”
Foi a estupefacção geral. Não maior do que a minha pois tinha a certeza de que não me havia enganado. Virei-me implorando o seu auxílio mas para meu espanto vi que o seu ar era de fúria e gritou-me uma série de nomes próprios masculinos que não fui capaz de decifrar. Depois arrastou a cadeira com um estrondo e retirou-se intempestivamente, deixando-me sozinha com os convidados.
Disseram-me com toda a delicadeza que deveria levá-lo ao médico. Mas ele era médico, retorqui, de facto eu também o era. Mas insistiram que deveria procurar ajuda especializada. Em quê? Não sabiam. Eu também não.
Teria sido erro meu? Afinal ele podia ter usado uma variante mais complexa do código que eu ainda não havia decifrado. Tinha defraudado as expectativas do público em relação ao que ele tinha para dizer sobre um tema de tanta importância. Quando as pessoas se sentiam desamparadas procuravam conforto e respostas onde quer que estas se encontrassem. Ele era uma espécie de génio, de louco, de homem com algo profundo para dizer. E no entanto o que haveria que se pudesse dizer?
Fui encontrá-lo no campo com o cavalo. Estava com o animal pela guia mas quando me viu aproximar colocou o pé no estribo e atirou-se para a cela, largando a galope. A tarde tinha-se tornado cinzenta e carregada prenunciando um temporal. O que aconteceu de seguida não o poderia prever. Um relâmpago caiu escassos metros à frente do cavalo que se empinou e, dando uma cambalhota para trás, caiu com a coluna vertebral no chão. Apenas por milímetros não aterrou em cima do professor. Durante a queda ouviu-se um grito que ecoou no ar: “socorro!”
Socorro!”, eu ouvira “socorro!” e não “Soraia-Ofélia-Carina-Odete-Rosário-Rute-Olívia!”. Não, tinha sido um claro, inequívoco, instintivo, natural “socorro”. Algo impossível de reprimir perante a confrontação com a iminência da morte. Levei ainda uns minutos para perceber o alcance da simples palavra. E umas horas para reflectir sobre a importância da minha descoberta.
Entre a chegada da ambulância e a viagem para os cuidados intensivos do Hospital, entre as conversas com os médicos e as demoradas cirurgias para descomprimir as hemorragias intracraneanas fui concluindo que talvez tivesse estado a viver um grande equívoco. Mas só depois da convalescença de semanas pude de facto confrontar o homem com aquele novo e definitivo facto: ele falava normalmente, como o comum dos mortais.
Cansado, envelhecido, doente e derrotado contou-me tudo em português escorreito. Deixara de falar para se manter afastado das pessoas. Entediavam-no as pessoas. Com as suas conversas de circunstância, as suas frases feitas, as suas banalidades insuportáveis. Não queria o convívio da populaça mas, por outro lado, não sabia ser indelicado, rude, mal-educado. Inventou então um esquema simples de palavras indecifráveis. Que não tinham nada de especial. Só quando eu apareci e comecei a investigar ele se assustou e, para não ser desmascarado, começou a refinar as sequências e foi inventando o código. Quanto mais perto eu chegava da solução mais ele a refinava até se ter apaixonado por mim, até ser reconhecido por toda a gente e se ter habituado ao convívio mundano e de tudo quanto quisera um dia abdicar, até ser tarde demais.
Então percebi que o mais grave ainda estava para saber. A Sílvia, quem era ela afinal?
Era a esposa morta, perdida para o paludismo, em África, apenas uns dias depois da boda. Sim, não a conseguira esquecer até ao presente. Por isso, ao fazer amor comigo, fazia na verdade amor com ela, que até morrera virgem.
Finalmente pude perceber o meu pesadelo que tantas noites me acordara. A angústia que me empapava os lençóis de suor era a do paradoxo circular, da piada seca e sem graça de uma justificação que continha a sua própria causa. Eu criara a fala encriptada do professor, ao tentar decifrar algo que não tinha sentido inicialmente. E ele agora caía de um precipício, não porque eu caía com ele, mas porque eu o havia empurrado. Eu suava porque tinha sido a causa da sua queda. E querer ajudá-lo era o motivo da sua perdição.
Não havia alternativa senão despedir-me para sempre. Ele abandonou os nomes próprios e voltou às suas aulas e aos pacatos passeios a cavalo ao fim da tarde. O mundo finalmente esquecera-se do professor caprichoso.
Tudo o que eu desejava era começar a esquecê-lo também.


Olhou o relógio de pêndulo e com surpresa viu que tinham passado três horas. Tanto tempo. Fizera pausas. Criara silêncios. Tentara afogar a ansiedade friccionando as mãos uma contra a outra, em movimentos em concha durante minutos mudos. Mas reproduzira a sua memória tão fiel quanto lhe foi possível. O homem ouvira pacientemente sem qualquer interrupção.
Olhava-a com simpatia. Ou compaixão. Por fim perguntou:
- Tem a certeza que lhe será útil a minha ajuda?
- Não acha que sim?- retorquiu surpreendida.- Preciso libertar-me!
- Não ponho isso em causa. Eu tento ser consciencioso no meu trabalho. Tenho sempre que averiguar que vou ser uma ajuda e não um prejuízo.
- Como assim?
- Diz que quer libertar-se. Ora eu concordo. Precisa de se libertar. Resta saber de quê? O que está a prendê-la concretamente? A memória do Professor? Ou a culpa?
- Sim, a culpa, é a culpa do que lhe fiz!
- Então temos de pensar numa estratégia para acabar com a culpa. Mas receio que fazer desaparecer a memória, esta memória específica, ou seja, neste caso todas as suas memórias envolvendo o Professor, não vai fazer desaparecer a culpa...
- Como assim? É claro que vai! Não vou voltar a sonhar com o Professor a cair do precipício, não vou continuar a acordar durante a noite com o corpo todo molhado do medo...
- Sim, isso irá desaparecer, de facto, mas...
- Mas? Não há mas. É tudo isso que eu preciso. É só isso...
- Temo que não seja assim tão simples.
- Como não? Consegue ou não fazer-me esquecer selectivamente a memória do Professor?
- Consigo. Não é isso que está em causa. O meu método é infalível e extremamente eficaz. Está a ver estes livros? - olhou para as estantes que forravam quase a totalidade do compartimento de alto a baixo. - São as memórias removidas de quem me procura. Está tudo aqui. Isso quer dizer que nunca mais serão recordadas por quem se quis ver livre delas.
- Ah, devem ser milhares... - disse olhando os livros grossos de encadernações clássicas agrupados cuidadosamente nas prateleiras por cores. - O que faz com as histórias? Publica?
Ele olhou também os livros demoradamente com um sorriso carinhoso.
- Todas as histórias ficam guardadas por escrito e algumas publico, sim. Elas tornam-se minhas. Faz parte do acordo que assinará e que será válido se chegarmos à conclusão que posso ajudá-la.- passou-me uma folha e uma caneta.
- Porque duvida?
- Porque o seu problema é a culpa. Não acredito que seja a sua história com o Professor.
- Mas sem história com o Professor não haverá desilusão e por isso não haverá culpa.
- Pois é aí que eu discordo. Repare uma coisa, a culpa não é assim tão simples. A culpa é uma entidade com a sua própria agenda. Ela comporta-se quase como um ser independente que vive dentro do nosso espírito. É como se fosse um parasita espiritual. Vai-se alojando de memória em memória. Ou seja, é possível que eu faça desaparecer a sua memória do Professor mas não vou matar a culpa. Então ela irá saltar para uma história mais antiga. Quem sabe com os seus pais... Tudo no fundo remonta às histórias da nossa infância. E essas são complicadas de apagar. Só muito raramente apago memórias envolvendo progenitores. Porque essas memórias definem a nossa personalidade. Não quero mutilar personalidades. Tenho uma ética muito rigorosa. Muito rigorosa. Tirando os casos de maltrato graves, nunca retiro a memória de um pai ou de uma mãe a uma pessoa. Só mesmo em último caso. Outro caso que recuso liminarmente é uma história que abarque quase a totalidade da vida da pessoa. Por exemplo, ainda ontem tive uma senhora que queria esquecer o marido que lhe pedira o divórcio ao fim de quarenta anos de casados. Ora isso era causar-lhe uma amnésia quase total. O equivalente à destruição da personalidade da senhora. Ficava sem memória mas também sem bases emocionais que lhe dessem indicações de quem é. Não é aos sessenta anos que uma pessoa tem tempo de se reconstruir do zero.
- Acha então que mesmo anulando o que passei durante uns anos vou continuar com os mesmos pesadelos?
- Não com os mesmos. Com outros. Como foi o resto da sua vida? Não quero que me conte. Quero que durante uns momentos medite. Não tenha pressa. Irei lá dentro preparar as coisas para o caso que chegarmos à conclusão que devemos prosseguir...
Ela olhou longamente para os livros de várias cores. Havia, pelos vistos, muitas memórias deletérias. Memórias sem utilidade, sem préstimo. Memórias que apenas perpetuam dor e medo. Queria mesmo largar aquela sua história? Como uma cobra largando uma pele já morta, que apenas comprime o que fica vivo e precisa de se mover e progredir? Haveria alguma coisa imprescindível que se perderia com aquela recordação? Seria a lembrança daquele amor uma relíquia digna de preservação? Havia tantos episódios inócuos do passado que gostaria poder revisitar e que lhe estavam vedados. Porque seria que aquela longa novela de enganos teimava em persegui-la, atormentando-a em sonhos?
Enquanto se perdia nestas deambulações mentais, ele regressou com um tabuleiro de prata com uma taça cheia de um liquido de cor parda que lhe colocou no colo.
- Pensou bem? - agora sorria abertamente. Como se tivesse adivinhado que ela havia tomado a decisão certa.
- Sim. Não tenho dúvidas. Esta é a história que quero matar. A culpa está incrustada aqui. Mesmo que ela migre para outro lado será um problema a posteriori que resolverei provavelmente recorrendo a outros métodos. Como disse e bem, não vou poder esquecer o meu pai, se o problema estiver aí, como provavelmente estará. Mas irei procurar a melhor solução. Tal como o soube fazer quando decidi procurá-lo a si.
- Não teve dúvidas durante os nossos contactos por escrito?
- Não. Só me custou a espera antes de subir a sua casa. Por ter chegado antes da hora. O que preciso fazer? Beber este líquido? Quanto tempo demorará a fazer efeito? - Falava enquanto assinava o contrato.
- Sim, beba. Será rápido e indolor. Não tenha medo.
- Não tenho. Confio em si. - E bebeu decidida todo o conteúdo da taça de uma só vez. Sorriu para ele e foi correspondida.
- Não se levante já. Relaxe por uns minutos. Deixe correr os pensamentos. Sente-se bem?
- Sim, perfeitamente. Quero agradecer-lhe. Tenho o pagamento aqui na mala. -retirou um envelope fechado que continha notas levantadas do banco logo pela manhã. Estendeu-lho.
- Obrigado. Não se levante ainda. - recebeu o envelope, guardou-o numa gaveta da secretária. Voltou a sentar-se em frente ao sofá comprido.
- Quando quiser... está pronta. Se algum dia voltar a precisar de mim... cá estarei, para ajudá-la. Sempre e só para ajuda-la.
- Muito obrigada. Não me esquecerei de si. Muito obrigada por tudo.
Ele acompanhou-a à porta. Despediram-se com um aperto de mão caloroso. Ela sorriu uma vez mais. Ele correspondeu ao olhar prolongado. E ao sorriso.
Ela desceu as escadas ainda mais lentamente do que as tinha subido. Antes de abrir a porta da rua sentiu vontade de regressar aquele sítio. Voltar a subir as escadas e visitar o homem. Talvez a culpa não fosse o único parasita mental a saltar de memória em memória. O que dizer do amor? Mas logo ao sair para a rua se esqueceu do que estava a pensar.
Apenas uma certeza a dominava completamente: tinha de voltar a ver aquele homem.