domingo, 10 de agosto de 2014

OURO E CINZA



Ouro e Cinza é um livro de crónicas de Paulo Varela Gomes. São crónicas que haviam sido publicadas em várias revistas e jornais e que agora foram compiladas e editadas pela Tinta da China. E em boa hora o foram pois, andei distraída a ler na imprensa escrita os mesmos cronistas de sempre, como quem coleciona os meus cromos, e me passou ao lado os textos do PVG. Costumo estar atenta nos livros desta editora. A partir de agora não voltarei a cair no mesmo erro. Paulo Varela Gomes, eis um nome que despertará toda a minha atenção daqui em diante.


Chamaram-me a atenção as crónicas sobre animais. PVG escreve sobre animais, especialmente sobre cães, com uma sensibilidade rara que comove.



(...) "Há nos humanos um desequilíbrio congénito que se exprime numa insatisfação que não é constante mas é frequente.
Ora, não sucede isto com os animais. Se os alimentarmos, se lhes dermos abrigo, espaço e companhia, se lhes cuidarmos da saúde, se os amarmos, eles são felizes, esfuziantemente felizes, sempre. A infelicidade é a excepção na vida dos animais amados, e não, como no caso dos humanos, a regra. Isto quer dizer que nós, que partilhamos a experiência irreversível do gosto pelos animais, conseguimos por vezes trazer a felicidade absoluta a algumas criaturas deste planeta.
A felicidade dos animais ainda é uma ideia nova na Terra. Estamos a tentar explica-la e impô-la. Pedimos desculpa pelo incómodo causado."


Nem todas as crónicas do livro estão ao mesmo nível. Mas algumas são tão boas, tão tocantes que chegam a doer, a angustiar. E a querer ler mais, muito mais. 


"Uma vez, no Rio de Janeiro, passei por um miudito deitado numa sarjeta seca de uma curva muito apertada. Os carros passavam-lhe as rodas rente à cabeça, um após outro. Ninguém fazia menção de parar. Dobrei-me para ele e reparei que chorava convulsivamente. Tirei-o da rua a custo. O patrão tinha-o mandado fazer um pagamento mas tinha sido assaltado. Estava ali à mercê da sorte. Não sabia se queria morrer, mas também não sabia como continuar a viver."



Existem no livro um secção de crónicas escritas na Índia. Já li vários livros sobre a Índia, todos muito bons, de várias editoras, incluindo a Tinta da China, que tinham originado em mim a convicção de que este era um país a evitar. Eis que leio uma colecção de páginas tão inusitadas e interessantes que faz retirar da minha lista de países riscados este exótico destino. Não sei se lá irei um dia mas confesso que fiquei curiosa quanto à minha reacção à Índia que tanto apaixonou PVG.



"Creio que aqueles de nós que amam a Índia o fazem pela mesma razão que leva os outros a ter medo dela, ou nojo. Não se trata dos monumentos e da miséria, respectivamente. da explosiva variedade de paisagens, e do atraso. Da vastidão das distâncias, e da claustrofobia das multidões. Do cheiro da fruta... e do cheiro do lixo. Trata-se de que tanto os amantes da Índia como aqueles que lhe são alérgicos são forçados a passar por uma prova de fogo da qual a maior parte das vezes nem sequer têm consciência: antes de ser possível repousar no seio da Índia ou fugir dela para nunca mais, atravessa-se um período de loucura, mansa ou feroz, transitória ou irremediável, que acomete todos os europeus, quase sem excepção e que se exprime pela alacridade exuberante, o ataque de pânico, a tensão de todos os momentos, que tantas vezes testemunhei - e sofri. Mais que o calor repentino, e depois líquido, contínuo, incansável, é a dilatação descontrolada dos poros e dos sentidos, imersos numa atmosfera vegetal pastosa que cheira a lixivia dentro de casa e legumes podres na rua. É como se ficássemos nus, como se tivéssemos perdido a pele com que nascemos e aquelas que a educação nos deu, a roupa que se torna inútil num assalto do suor, dos escapes, da chuva torrencial e quente da monção. É a higiene pessoal que se torna ridiculamente irrelevante perante o suor, a lama, a impressão de sujidade de cada parede, cada janela, cada pavimento. São as nossas reservas e boas maneiras, inúteis no caldeirão de gente onde mergulhamos e que nos toca, nos olha na cara e faz corpo connosco, encostando-se, roçando-nos, trocando de cheiros com o nosso."

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