sexta-feira, 23 de maio de 2014

nada de nada



 Nada de nada. Não te conto nada. Não te vou dizer que ele me agarrou os cabelos com uma das mãos esticando a cabeça para trás e que com a outra me apertou a garganta. Apenas tenho para ti uma história sobre as calças que vesti hoje, compradas em saldo, são de linho com elastano. Queres tocar?
De resto mais nada. Não te vou repetir as palavras: agora vais ver o que é ser minha. Hoje o dia está ameno, podemos passear na esplanada, bebericar café ou talvez um chá, dos que acalmam ou relaxam. Porque não me vais ouvir dizer nada. Não te vou contar que me tinha pedido namoro na mesa no restaurante ao jantar. Nem morta eu vou partilhar a alegria com que aceitei. Não falo.
Podemos ficar em silêncio a ver o mar. Tudo parece sereno como a ondulação marítima benigna dos dias parados de verão.  Não vais ouvir como ele me atacou a roupa, rasgando-a. Não te explico como o meu corpo serpenteou em vão contra o banco do carro. Está tudo normal. O dia escorre pelas pernas das mesas e cadeirões à beira mar. Tu não me escutas. Eu não abro a boca. Não saberás das dores do corpo amassado. Não vês lágrimas. Nem recebes palavras. As nossas malas são tão parecidas, quase iguais. Tudo bem, fica tudo bem. As calças com os sapatos e as malas. Não sabes do cheiro a sémen que ficou no ar saturado do carro, penetrando-me as narinas. Não direi nada. Nada de nada.
As cores são bonitas, vistosas, o teu sorriso é limpo. Não vais deixar de sorrir pois não irás ouvir as minhas palavras sabotadas. Abortadas às escondidas, melhor desta maneira, que o teu sorriso está limpo, tem de continuar limpo. Pois o dia é ameno e o mar está plano, quase morto. Morto de dentro para fora. E tudo permanece. Paira. Nada virá à superfície. Nada de nada.

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