terça-feira, 1 de abril de 2014

O Lado Selvagem



Todos os dias faço o mesmo trajecto para o trabalho. Cindo minutos após colocar o carro em marcha percorro uma estrada à beira de uma serra de modesto relevo, plena de vegetação rasteira, que do outro lado tem as traseiras de grandes e médias fábricas industriais, empresas de serviço e grandes superfícies comerciais. A via é secundária e discreta, o trânsito intenso. É portanto a localização perfeita e elas lá estão. Faça chuva faça sol, ao relento dos dias, aquelas mariposas ocupam o campo. Debaixo de um chapéu-de- praia, sentadas em cadeiras de plástico a folhear revistas. São dois pequenos grupos de matronas pesadas e de idade que se esperava respeitável.
Confesso que já nem as olho com atenção durante o meu percurso habitual nos dias úteis. Conheço-lhes as feições tristes, as poses exageradas, as roupas pardas. Mas aos Sábados lá estão elas. Enquanto os outros passeiam, eu continuo a ir para o trabalho e as borboletas estão de plantão recordando-me que não estou só na minha sina de não descansar ao sexto dia. Fazem-me reconciliar com o aconchego do automóvel. Acomodo-me melhor nos estofos da viatura pensando na fragilidade do pano do chapéu-de-sol que permitirá que o vento frio as trespasse nas cadeiras rijas.
Aos Domingos encaro-as de frente a prescutar-lhes as emoções. Estarão tão cansadas quanto eu? Haverá revolta por terem de suportar a fúria selvagem dos elementos quanto todos os cristãos vão à missa, pachorrentos?
Mas aquelas andorinhas não se deixam descodificar facilmente. Fico na dúvida até chegar ao meu posto. Durante o dia quando calha a receber uma dentada de algum animal menos domesticado penso que outras mulheres também por obrigação do seu ofícío estarão a ser alvo de ferroadas que lhes dilacerarão as carnes. Colegas na arte de lidar com o lado selvagem da vida.
De volta à casa vejo-as ainda de serviço, alvo fácil dos caprichos da chuva e dos machos que continuam a povoar as bermas da Avenida Marconi. Sorrio com a ironia da toponímia. Quase parece que elas, reconhecendo-me, me sorriem também.